OCASO EM TRÊS ATOS

Ontem terminou o mandato do presidente Bolsonaro. Só sobrou o cargo. Me explico.

Ao tomar posse, em janeiro de 2019, o presidente se apresentou para o desafio de governar a problemática 7a. potência do Planeta. Um país que tentava sair da mais profunda recessão da República, emergindo de um ciclo de 16 anos de governo de esquerda que terminou mal, muito mal, com a presidente incapaz sendo impedida e o seu sucessor, Michel Temer enredado com a Justiça e com escândalos administrativos.

Tal como Jânio Quadros e Fernando Collor de Mello, o presidente eleito se disse imbuído da missão de varrer e limpar o País. Além de promover uma transformação administrativa no governo e implementar uma pauta liberal na economia. Não sem promover as reformas, de há muito pendendentes, a nível de Estado. Seriam a administrativa, a previdenciária e a tributária as mais prementes. A reforma política, por razões de pertenência do presidente ficou engavetada, para que nada mudasse para um campo desconhecido do fisiologismo que o afeta.

A formação do ministério foi o anúncio de uma tragédia. Não pelos defeitos dos ministros, que, em muitos casos afloraram mais tarde na forma de incapacidade, burrice, teimosia, ideologia, e até flertes com a vigarice. Sim pela disfuncionalidade da equipe. Quem tivesse parado para imaginar o primeiro banquete da nova gestão, se daria conta da impossibilidade de o governo dar certo. Quase nenhum ministro conhecia outro ministro. Se conheceram naqueles primeiros dias. Ora, como chamar isso de uma equipe? Moro não conhecia Guedes, que não conhecia Vélez, que não conhecia Damares, que não conhecia Santos Cruz…

Depois veio a fase dos anúncios econômicos e da promoção das reformas. O primeiro ano de mandato, neste quesito, foi consumido pela reforma da Previdência, nada mais. A reforma administrativa ficou nas gavetas do Planalto esperando não se sabe o quê. Entretanto, notícias dos bastidores revelaram que o governo não estava disposto a mexer no vespeiro que é reformar carreiras e quadros de salários. A tributária? Por soberba não tomaram a reforma que está no Congresso, promovida por Baleia Rossi e elaborada por Bernardo Appy, que parece razoável. Nada se fez, portanto, na seara da economia. É claro que um governo liberal é minimalista em termos de ações do governo na economia. Mas, para alterar o estado de coisas que impõe o «custo-Brasil», alguma ação se faz necessária. E a resposta de Guedes sempre foi uma combinação de anúncios mirabolantes de propostas vagas e dissipação e inércia.

Assim, desta longa noite nas políticas econômicas, amanhecemos janeiro de 2020 com o anúncio do tal «pibinho», o que deixou o governo desorientado, até que entrado fevereiro veio a pandemia da Covid 19.

Foi neste momento que o governo acabou. Acabou, simplesmente, porque o presidente foi incapaz de fazer a leitura apropriada do desafio e tomou o caminho errado. Não só. Advertido pelos vários e inequívocos sinais vindos de todos os cantos do mundo, teimou em negar a gravidade da doença, se retirou da gestão do problema, terceirizou isso aos governos das esferas estaduais e locais e fomentou uma crise dentro de seu governo, desmontando o Ministério da Saúde, órgão crucial para a tarefa de mitigar os efeitos da pandemia. Sua proposta de manter a economia funcionando não teve guarida no seio da sociedade. Ali, em março, terminou o governo que nem bem estava começando.

De março a junho, o governo empreendeu uma cruzada contra os demais poderes e contra as outras esferas da federação, gerando conflitos dia sim e outro também. Seus apoiadores saíram às ruas a desafiar as instituições democráticas e a se aproveitar da imobilidade da maioria silenciosa que se recluiu nas suas casas para fazer caso à pandemia. De pouca densidade, o que estes movimentos fizeram foi mostrar a cara de um governo que se revelou autoritário na essência e incapaz nas ações que realmente importam à Nação. O presidente se transformou num espectro, trazendo para si uma guerra contra o Judiciário para fazer uma cortina de fumaça sobre os problemas policiais que sua família e amigos enfrentam. Sim, o país se tornou refém das querelas de Rio das Pedras e Muzema, Mariele incluída incidentalmente.

Como adorno, ainda o presidente editou desordenadamente medidas provisórias de banalidades em geral, resolveu desmontar a Polícia Federal, aparelhar a PGR, se queimou no affair com o ministro da justiça, tentou envolver as Forças Armadas, chamando-as para seu acampamento e assistiu passiva e complacentemente suas hordas agredirem o Congresso e o Judiciário.

Por fim resolveu assumir a cruzada contra, não o STF, mas contra o sistema de justiça do País, dizendo, ainda anteontem, que preparava uma emboscada a «eles» (quem?). Sintomático que a Deputada Carla Zambelli tenha ameaçado «mostrar quem são». O episódio dos foguetes sobre o prédio do STF foi simbólico.

Pois bem, nesta semana, ao que tudo indica, se deu o fim do mandato do presidente. Como dissemos, anteontem, dia 17 de junho, ainda o presidente, no «cercadinho do Alvorada», vociferava contra os juízes. Já não estava lá, mais, a imprensa, mas ainda uns poucos admiradores faziam a audiência de todos os dias.

Ontem, dia 18, o presidente passou direto, de manhã e ao fim do dia. Não tinha nada mais a dizer. Em duas oportunidades o presidente fez lives, uma na defenestração do ministro da educação, o pior de todos os tempos, onde só os dois apareceram. O presidente, vocibaixo, murmurando «tempos difíceis». Na outra live, a das quintas-feiras, só acompanhado da tradutora de LIBRAS. Nada dos triunfantes ministros de outrora, alguns militares, tal como nas aparições de Chávez e Maduro. Sim um homem visivelmente derrotado, falando baixo, desarticulado, atrapalhado na leitura do roteiro em cima da mesa. Para quê? Para explicar-se, tomando para si o problema policial de um ex-assessor, amigo de longa data, que andou se desviando da legalidade, supostamente em conluio ou a serviço da família presidencial, em tempos idos da política miúda e das oportunidades do «rouba-pouco» do baixo clero.

Mas, se o presidente nada tem a ver com Queiróz, por que a Nação inteira tem de ouvir o presidente sobre o que, supostamente, é irrelevante ao País? Queiróz, se outro fosse, seria um obscuro «corruptinho», cujo caso seria um caso de rotina da políca e MP cariocas. Não são os atos de Queiróz que escandalizam. Sim o trato que a família Bolsonaro, usando de sua posição dão ao caso. Claro, pois há vinculação dos delitos de Queiróz com as condutas de Flávio que foi, digamos, o sucessor do presidente na patronagem dele, lembrando que a filha de Queiróz era funcionária de Bolsonaro na Câmara. Ambos foram exonerados no mesmo dia, nem bem o escândalo ganhou conhecimento público, na campanha eleitoral.

De lá para cá, Queiróz, investigado, foi privilegiado com a dispensa de comparecer ao MP para depor, desfrutando do recurso de mandar uma cartinha, escrita ao gosto de seus advogados, para eximir-se da condução «sob vara». Que investigado desfruta disso? Nem Lula, lembrando daquela condução à PF, «espetaculosa», como ontem disse o presidente na live, para o deleite dos adversários do ex-presidente, agora bandido.

Ao longo de um ano Queiróz desapareceu e, eis que ontem, surgiu na casa do advogado do presidente! Que estava fazendo lá? Claro, não era foragido, mas era escondido. Sintomaticamente, o presidente, na live, se trái ao afirmar categoricamente «que não havia mandado de prisão contra Queiróz». Como sabia? Pelo serviço particular de informação? Sabedores de que o presidente mantém espiões nos órgãos de investigação e processamento criminal, polícia, MP e Judiciário, mantiveram a busca de Queiróz através da inteligência e postergaram o pedido de prisão até saberem seu paradeiro. Medida prudente para evitar o vazamento, fato corriqueiro nos casos em que se envolvem o presidente e seus familiares, como a mídia tem mostrado. Outra razão para este procedimento deve ter sido porque, vazada informação de que Queiróz seria preso, algo parecido ao que ocorreu com o Capitão Adriano poderia acontecer com Queiróz. Afinal ele, como Adriano, estava sob a custódia informal de gente interessada e comprometida com seus crimes. Uma queima de arquivo era bem provável. Sintomática a participação de um promotor paulista na diligência em Atibaia e de uma promotora carioca no desmbarque e remoção do prisioneiro à carceragem.

Ou seja, o presidente acusou seu interesse no caso, dando um fora. Havia sim mandado de prisão, ao menos desde a véspera. Esta declaração é crucial, pois revela, além da cumplicidade – cumplicidade não, atuação direta, pois seu advogado não é advogado de Queiróz e estava prestando serviço a alguém, quem? -, que seu «serviço de informação particular» se imiscuía indevidamente no processo de Queiróz.

Muita água há por rolar… mas os generais já não estão aparecendo ao lado do presidente, os quadros da ativa estão desconfortáveis e os da reserva devem estar começando a analisar sua situação. Como apoiar um presidente que é um caso de polícia? E, não adianta tentar politizar, pois há fatos capitulados na lei penal que indicam que o presidente pode e deve estar envolvido em um contexto de gangsterismo. Simples assim. Milícias, assassinatos, extorsões, grilagem, construção ilegal, lavagem de dinheiro… Sintomáticos os ícones de Tony Montana na lareira da casa do advogado de Bolsonaro… Que culto!

Sim, o mandato terminou. Claro que estamos aqui adotando uma liguagem figurada, mas que, substancialmente, reflete nos fatos o fim do mandato do presidente. Mandato no sentido imperial chinês, muito bem descrito por Henry Kissinger em seu magnífico livro On China, onde narra a aproximação dos EUA com a China nos anos 60-70.

«He lost the mandate of heaven«. Ou seja perdeu o mandato dos céus, uma maneira de explicar aquilo que chamamos em política de legitimidade. Mais vulgares, os americanos diriam que o presidente, hoje é um «pato manco».

Com a observação de que o caso de Bolsonaro é o de estar com as duas pernas quebradas.

Sem cercadinho, sem acompanhantes nas lives, quase sem Centrão… e com os militares colocando as barbas de molho.

Começou o ano com seu governo terminando, ontem encerrou o mandato, falta entregar o cargo.

Uma peça em três atos. Tragédia.

Piriápolis, 19 de junho de 2020

Marcelo Sommer

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